Haia – A Holanda além de Amsterdã

Quando o assunto é Holanda, é natural que a primeira cidade que venha à mente turista seja ‘Amsterdã’, mas acredite, o país dos moinhos e das tulipas vai muito além da capital oficial. E digo oficial, pois embora Amsterdã seja, pela constituição, a capital dos Países Baixos, muitos ainda consideram Haia como sua capital de fato, já que é lá que se encontram a sede do governo, as embaixadas (mais de 180), os ministérios, o parlamento e a família real (a Holanda é uma monarquia constitucional parlamentar democrática).

A 56 quilômetros para o sul de Amsterdam (51 minutos de trem), situada na costa do Mar do Norte, Haia (The Hague, em inglês, ou Den Haag, para os locais), é a terceira mais populosa cidade dos Países Baixos. Considerada “a capital jurídica do mundo”, em vista de sua forte tradição diplomática, com a celebração de diversas Conferências, a cidade é a sede da Organização das Nações e Povos Não Representados (UNPO), da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) e de numerosos outros organismos internacionais ou não governamentais, além de também sediar quatro tribunais internacionais: o Tribunal de Arbitragem Permanente, o Tribunal Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, e a Corte Penal Internacional.

Passei lá 3 fantásticas semanas em agosto do ano passado (2016), tempo que durou o curso em direito internacional privado que fiz, ministrado na Academia da Haia. A Academia se encontra nos terrenos do Palácio da Paz (Vredespaleis, em holandês), que também abriga o Tribunal Internacional de Justiça (principal órgão judicial das Nações Unidas), a Corte Permanente de Arbitragem e a Biblioteca.

Embora nós, estudantes da Academia, não tivéssemos acesso ao interior do Palácio (somente participando do tour contratado na porta é possível ter acesso – e não é fácil conseguir esse tour, costuma estar sempre lotado), e nem ao Tribunal Internacional de Justiça (da janela da sala de aula era possível ver apenas funcionários correndo de um lado para o outro na passarela que liga o Tribunal ao Palácio, com extensa papelada em mãos, e ares de muita importância), nos era permitido usufruir dos jardins do Palácio. E, sinceramente, a vista do Palácio por si só já valia a coisa toda. O fim da curva da minha caminhada diária para a aula, que abria o espaço para a frente do Palácio sempre me tirava o fôlego.

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É ele o símbolo maior do Direito Internacional e da tentativa dos países de se entenderem pelo diálogo, e não pela guerra. A construção, com mais de um século (sobreviveu intacta às duas Guerras Mundiais), teve a contribuição de presentes simbólicos doados por diversas nações. A Holanda doou o terreno; a Alemanha, os portões; a Hungria, vasos; os Estados Unidos, a estátua da deusa da Justiça Thêmis, e daí por diante. Do Brasil, partiu a madeira que decora o Japanese Room, sala onde o Conselho Administrativo da Corte Permanente de Arbitragem se reúne e que ganhou esse nome graças às pinturas japonesas nas paredes. Junto aos portões externos, há um jardim sempre florido, bancos com desenhos de mosaico quase infantis representando a paz, e a chama da paz (que nunca se apaga), acendida por todos os países. Dê uma volta ao redor da chama desejando a paz mundial – é parte da experiência ‘Haia’.

Não posso deixar de mencionar Ramskells, o gato preto do Palácio da Paz, adotado pelos juízes da Corte Permanente de Justiça Internacional. Diz a história que, na Primavera de 1924, um incêndio estourou no Palácio, aprisionando os juízes dentro. Ramskells, que era ferozmente leal a eles, os levou através do fogo para fora do prédio. Apesar de todos os membros da Corte terem saído em segurança, Ramskells inalou uma quantidade muito alta de fumaça e faleceu três dias após o incêndio. Em sua homenagem, foi erguida uma estátua de 2 metros e pouco de altura, nos terrenos do Palácio.

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O curso é ímpar. Mundialmente reconhecido, com professores renomados de diversas partes do globo, e com a opção de acompanhar as aulas em inglês ou francês, os temas de 2016 foram os seguintes: Aspirações e Realidades do Direito Internacional Privado, Eficácia da Cooperação Internacional na Arbitragem Comercial, Os Princípios UNIDROIT e a Lei que Governa os Contratos de Comércio Internacional, Questões de Direito Internacional Privado sobre Arranjos de Subrogação, O Regime Jurídico das Atividades Espaciais Internacionais: Entre a Lei Pública e Privada, Práticas Restritas em Direito Internacional Privado, Juízos Civis e Comerciais Estrangeiros: Da Reciprocidade a um Esquema de Acordo Multilateral, A Proteção das Pequenas e Médias Empresas Empresas de Direito Internacional Privado.

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Se você é da área do direito, e puder, considere seriamente fazer esse curso. É um aprendizado e tanto. Não só no que tange ao âmbito jurídico, mas também o lado cultural. Dezenas de nacionalidades, idiomas, crenças e cores, todas na mesma sala, numa troca de informações e experiências dignas de uma Torre de Babel. Uma das intenções do curso é justamente esse envolvimento multinacional, que possibilita interações negociais e profissionais futuras ao redor do mundo – ou ainda que só amigáveis mesmo (eu, por exemplo, fiz ótimos amigos por lá).

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Minha Torre de Babel

Ah, e a biblioteca… Reconhecida pela vasta bibliografia sobre direito internacional (tanto em autos físicos quanto digitais), vale dispender umas boas horas vasculhando parte desse seu amplo conteúdo.

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Mas como nem tudo é só estudo, e nem todo mundo que entra aqui para ler meu relato quer saber do curso, vamos lá para as horas livres pós aulas/biblioteca:

Haia é repleta de museus. Não consegui visitar todos, mas dos que consegui, listo aqui meus favoritos, na ordem:

Panorama Mesdag. Pequeno museu com quadros do pintor Hendrik Willem Mesdag e outras exposições – não necessariamente quadros – de outros artistas. A principal atração deste museu é a pintura em 360° do Henrik Mesdag. Concluída em 1881, com 14 metros de altura e 120 metros de circunferência, é uma reprodução da praia mais famosa da Holanda, Secheveningen, e do vilarejo à sua beira. Você observa a pintura, que circunda toda a sala, de uma plataforma em seu centro. É fascinante! Quanto mais se observa a pintura, mais vida vão criando os detalhes e mais parte do cenário você vai se sentindo. Muita gente visita o museu para ver apenas esse quadro. Eu fui uma delas, e talvez por isso mesmo tive surpresas tão boas com as demais obras que vi por lá – já que eu não esperava ver nada de legal além do Panorama do Mesdag. Apresentações em vídeo com panoramas ao avesso, simulações, técnicas de interação com o público e outros trabalhos que brincam com a ilusão de ótica são outras atrações que fazem valer muito a pena a visita.

Museu do Escher. Outro mestre em ilusões de ótica. Parte das pinturas/objetos em exibição são de interação com o público. Se você gosta de coisas que mexem com o seu senso de realidade, não deixe de ir, vale muito a pena! Conselho: não consuma bebidas alcoólicas antes da visita.

Mauritshuis. Traduzindo, “Casa do Maurício”. Especificamente falando, era a casa do Maurício de Nassau, aquele Governador dos territórios sob domínio da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil. Transformaram em museu seu antigo Palacete. Aconselho se você gostar de pinturas à óleo. Tem várias pinturas de artistas holandeses, inclusive Van Gogh. Principais atrações: Menina com brinco de pérola de Vermeer, e Lição de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt.

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Inception! (Apelles Painting Campaspe, de Willem van Haecht)

Madurodam. Não é bem um museu, é um grande conglomerado de maquetes com réplicas em miniatura de cidades e atrações holandesas. É um passeio bem infantil. Muita coisa se mexe, faz barulho, os trens andam pelos trilhos, aviões manobram no mini-Schiphol, barquinhos navegam pelos rios e canais. Minha maquete favorita é a que representa um festival de música eletrônica. É uma maquete interativa. Nela, você é o DJ e começa a tocar sua música. Quanto melhor for a música, mais loucamente os bonequinhos se mexem. Se eles não se mexerem muito, pode saber que essa não é uma profissão para você seguir. Aconselho só se estiver com criança, ou se sobrar tempo ou se gostar muito de miniaturas, porque é divertidinho, mas tem coisas melhores para fazer por lá. Sem contar que o preço da entrada é bem salgado. Lembrando que o parque fica a céu aberto, então só vá se o clima estiver bom. Dica: se for, compre suas lembrancinhas na lojinha de lá, foi onde achei os melhores preços.

Ultrapassada essa parte de museus, vamos para as demais dicas:

– Não deixe de conhecer a famosa praia Scheveningen. Não tente pronunciar. Não adianta. Você não vai conseguir. Só os locais conseguem. Meu host me disse que na época da 2a guerra, eles usavam essa palavra para identificar a nacionalidade das pessoas (em especial alemães). Se falasse errado, era considerado espião e gentilmente conduzido para o xadrez.

Venta muito na praia (é comum usarem pára-ventos por lá para tomar um sol sem o incômodo do excessivo vento) e dificilmente fará calor, ainda que no verão, mas vale a pena a visita mesmo assim. Não chega perto das nossas famosas praias brasileiras, mas é uma praia ampla e bonita. Lota de gente no fim da tarde (como o sol se põe lá pelas 20h no verão, dá tempo de curtir praia ainda na saída da aula/trabalho) e nos finais de semana. Como venta muito, o pessoal aproveita para praticar windsurf (vi vários por lá). Também vi alguns surfistas. O mar, embora escuro, parece ter partículas douradas que dão um quê de especial para o visual. A água é fria, mas não tanto quanto imaginei (pelo menos no verão) – ventava tanto de fora que quando entrei quase a achei morna. Tem um longo píer cheio de barzinhos e afins. Quando fui, havia um bungee jump na ponta do píer. Há diversos bares na orla também. É um ótimo lugar para frequentar tanto durante o dia, quanto para um jantar, ver o sol partir, ou mesmo para curtir uma baladinha à noite.

Na saída da praia, pare no restaurante de frutos do mar que fica bem de frente para o píer e peça um sanduíche desses para degustar:

Mas se praia não é muito sua onda, não se preocupe, não falta o que fazer no centro.

Tem uma rua só de lojas lá no centro que é uma fofura. Chama-se Noordeinde. Começa na porta do Palácio Noordeinde e vai seguindo rumo centro. Não passa carros nela. Vale uma visita, ainda que não queira comprar nada. Há algumas lojas de departamento espalhadas pelo centro também. Se não quiser ou cansar de fazer compras, pare em um dos mercados para tomar um drink ou comer alguma coisa. Por lá tem dois que aconselho: Plein e Grote Markt. São parecidos, ambos têm uma pracinha no meio diversos bares ao redor. O pessoal da academia amava ir para o Miller’s, no Grote Markt.

Se você for homem, não se preocupe com banheiro. Há vários banheiros masculinos espalhados pela cidade:

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Este estava na praça do Plein

Você pode também passar em um dos milhares de Albert Heijn’s (franquia de supermercado holandesa), comprar uns queijos e outros quitutes e ir para os jardins do Palácio Noordeinde (acesso pelas entradas laterais) fazer um piquenique. Não deixe de comer queijos de cabra (ainda que não faça piquenique e precise comê-lo no quarto do hotel)! Os queijos de cabra holandeses são deliciosos!

Outro quitute holandês famoso: batatas fritas – com molhos de todos os sabores! Sério, esqueça tudo o que o McDonald’s te ensinou sobre batatas fritas, é bem diferente e gostoso.

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Já que estamos falando sobre comida, outra coisa que você não pode deixar de comer por nada: Herring fish. Tem uma casinha (tipo uma banca) que vende que fica em frente ao Binnenhof (um dos cartões postais da cidade – é um conjunto de prédios governamentais, construídos em estilo gótico,  e sede do parlamento). É uma delícia! Ele é praticamente cru, só marejado no limão. E você escolhe se come com cebola picada ou não. E tem a opção de comer com pão também, mas aconselho a comer puro primeiro, bem tradicional. Atenção para a pose: tem um jeito certo de comer (cheque a estátua na foto abaixo). Cuidado com as gaivotas!!! Sério, elas estão em todos os cantos da cidade e se vacilar elas comem seu herring.

Recomendo também que experimente Stroopwafels quando for tomar seu café/chá. É uma espécie de bolacha recheada com caramelo. Também tem um jeito certo de comer: tem que deixar a bolacha sobre a xícara de café/chá quente, derretendo levemente com o vapor que for saindo. Quando já tiver dado uma amolecida, aí é só ser feliz.

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No geral, apesar desses petiscos que citei acima, os holandeses não têm muitos pratos típicos, mas têm excelentes restaurantes! Foi em Haia que comi a melhor comida mexicana (no restaurante KUA, próximo ao palácio Noordeinde) e japonesa (restaurante Sushi Morikawa, próximo ao Palácio da Paz)! Isso sem contar as que eu sequer tinha experimentado antes, como queniana, vietnamita, tailandesa (Thais Restaurant – Songkhla), e mais um monte! Essas duas últimas comi em restaurantes que ficam na pequena China Town deles (é bem pequena mesmo, mas é um charme! Também vale a visita! Fica no Centro). A cidade é bem cosmopolita. Você vai achar tudo quanto é tipo de restaurante que imaginar! E tudo muuuuito gostoso!! Eu fiz um tour gastronômico lá. Cada dia comia pratos de uma região diferente do mundo.

Ainda nessa linha de restaurantes, recomendo uma noite no Penthouse, no 42o andar do The Hague Tower. A 135 metros do chão, é mais alto que o restaurante da Torre Eiffel, e oferece uma vista de até 45 quilômetros. Você pode reservar para o almoço, para o chá, para o jantar, no restaurante, ou só para drinks/petiscos, no sky bar (são ambientes separados, embora no mesmo andar). Para subir para o sky bar (não tem muitas mesas, então a turma não pode ser muito grande – e é bom reservar antes), você paga na entrada, mas esse valor é convertido em um drink.

Se preferir tomar uns drinks sem tanta pompa, opções não faltarão. Haia é cheia de pubs estilo irlandeses. Gostei de um em especial, especializado em whisky (whisky heaven), o Huppel The Pub. Ele fica próximo ao palácio Noordeinde, em uma ruazinha super charmosa e estreita em que, acredite ou não (foto abaixo), transita automóvel. Nas raras vezes em que passa um carro, o pessoal sai recolhendo as mesas/cadeiras e se espremendo contra os muros para liberar o caminho. Uma diversão só. Esse pub trabalha com uma variedade alta de whisky, mais de 150 tipos. Descobri, inclusive, que bourbon com ginger beer é uma delícia! Acompanhado de queijo de cabra com mel, então…

Ah, além de comer as batatas e o herring fish, nada mais holandês a se fazer do que alugar uma bike e dar uns rolês! Fiz um passeio de bike lá com umas amigas que super recomendo! Aluguei a minha bicicleta em uma loja na beira da praia, perto de onde fica a estátua da mulher que está olhando para o mar, aguardando o marido voltar da pescaria. De lá, fui pedalando até o outro canto da praia, sentido norte, onde começa a trilha de bicicleta. Ela não é muito fácil de achar, tive que ir perguntando. Essa trilha é linda! Lembra o caminho de ladrilhos de O Mágico de Oz. Ela é só pra ciclistas (e tem um espaço lateral para caminhada também). Se não me falha a memória, a trilha tem 40km de extensão (claro que não fui até o final – fui uns 15 e voltei os mesmos 15) e faz parte da rota LF1 do mar do norte. Ela vai acompanhando o oceano – entre o oceano e as dunas. É lindo! Passei pela reserva de dunas Meijendel, onde saí da trilha para ver o mar. Tem lugares que você pode subir as dunas pra ver a vista, ou sair para o mar também, como eu fiz em Meijendel. Fui até uma cidade vizinha, Katwijk, onde me disseram que havia um sorvete gostoso, tomei o sorvete e voltei pra trás. Super recomendo.

Quanto a transporte, não precisa se preocupar, a cidade é bem pequena! Boa parte do que citei aí eu fazia à pé mesmo! Usava o Google maps do celular no começo pra me ajudar a localizar, mas logo você já dá para decorar tudo, porque é realmente pequena. Quanto ia para algum lugar mais distante (como a praia, que fica mais longe do centro), eu praticamente só usava tram (tipo um bondezinho) ou ônibus. No meu caso, como fiquei um tempo mais extenso (semanas), comprei o cartão de transporte público (que você recarrega para usar). Se não tiver o cartão, não faz mal, é só pagar cada trecho de viagem que fizer (paga quando subir no tram/ônibus mesmo). É bem mais caro pagar por trecho do que com o cartão, mas dependendo do tempo que você for passar por lá, também não compensa comprar o cartão.

Eu sempre procurava fazer tudo à pé, dentro do possível. Acho que é um ótimo jeito de conhecer a cidade também. Deparei-me com várias surpresas agradáveis à pé por lá, como esse festival de jazz nos canais:

 Sim, Haia também é repleta de canais, e você pode inclusive usá-los para passear de barco – tem como alugar.

Se você estiver passando uns dias em Amsterdã, portanto, e quiser ir além do pacote turístico padrão, aconselho um bate-e-volta até Haia. Para os que já planejam ir para lá, espero que minhas dicas tenham sido úteis.

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